quinta-feira, 17 de julho de 2008

DIRETO DA JULIANO MOREIRA PARA O MUNDO!

Buenas.
Hoje o assunto é quente. Avaliem.

"eu sou Stela do Patrocínio
bem patrocinada
estou sentada numa cadeira
pegada numa mesa nega preta e crioula

eu sou uma nega preta e crioula
vim de importante família
de cientistas, de aviadores
de criança precoce prodígio poderes
milagre mistério

comecei a existir
com quinhentos milhões e quinhentos mil anos
logo de uma vez, já velha
eu não nasci criança
nasci já velha
depois é que eu virei criança"

Stela do Patrocínio

Esta grata surpresa foi mandada por Rodrigo Villas-Bôas, direto de Barcelona, como ele diz para Tothom (todo mundo...)

Uma trajetória poética em uma instituição psiquiátrica

* Stela do Patrocínio foi, em toda sua vida adulta, uma interna de hospitais psiquiátricos.
* Aos 21 anos, foi internada no hospital Pedro II.
* Diagnóstico: "personalidade psicopática mais esquizofrenia hebefrênica, evoluindo sob reações psicóticas". Vinha da quarta Delegacia de Polícia.
* Quatro anos depois, foi transferida para a Colônia Juliano Moreira, onde viveu até sua morte, 26 anos depois.
* Gostava de falar e de escrever em papelão.
* Mas sempre foi uma voz excluída: negra, pobre, sem família, nunca possuiu a chance de ser ouvida pelo mundo. Isto começou a mudar em meados dos anos 1980, durante o movimento chamado Reforma Psiquiátrica, quando teve sua fala gravada em fitas cassetes por um grupo de estagiárias.
* Já naquela época, chamou a atenção pela poeticidade e força que continha.
* Agora, quinze anos depois, esta fala é pela primeira vez publicada em livro, 2002 (Azougue Editorial em parceria com o Museu Bispo do Rosário), possibilitando o alcance do grande público. Foi indicada ao Prêmio Jabuti de 2002.


É dito: pelo chão você não pode ficar
Porque lugar da cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo

Pelas paredes você também não pode
Pelas camas também você não vai poder ficar
Pelo espaço vazio você também não vai poder ficar
Porque lugar da cabeça é na cabeçaLugar de corpo é no corpo

*

Olha quantos estão comigo
Estão sozinhos
Estão fingindo que estão sozinhos
Para poder estar comigo

*

Eu já fui operada várias vezes
Fiz várias operações
Sou toda operada
Operei o cérebro, principalmente
Eu pensei que ia acusar
Se eu tenho alguma coisa no cérebro
Não, acusou que eu tenho cérebro
Um aparelho que pensa bem pensado
Que pensa positivo
E que é ligado a outro que não pensa
Que não é capaz de pensar nada e nem trabalhar

Eles arrancaram o que está pensando
E o que está sem pensar
E foram examinar esse aparelho de pensar e não pensar
Ligados um ao outro na minha cabeça, no meu cérebro

Estudar fora da cabeça
Funcionar em cima da mesa
Eles estudando fora da minha cabeça
Eu já estou nesse ponto de estudo, de categoria

*

Eu não queria me formar
Não queria nascer
Não queria formar forma humana
Carne humana e matéria humana
Não queria saber de viver
Não queria saber da vida
Eu não tive querer
Nem vontade para essas coisas
E até hoje eu não tenho querer
nem vontade para essas coisas

*

Não sou eu que gosto de nascer
Eles é que me botam para nascer todo dia
E sempre que eu morro me ressuscitam
Me encarnam me desencarnam me reencarnam
Me formam em menos de um segundo
Se eu sumir desaparecer eles me procuram onde eu estiver
Pra estar olhando pro gás pras paredes pro teto
Ou pra cabeça deles e pro corpo deles

*

Eu sobrevivi do nada, do nada
Eu não existia
Não tinha uma existência
Não tinha uma matéria
Comecei existir com quinhentos milhões e quinhentos mil anos
Logo de uma vez, já velha
Eu não nasci criança, nasci já velha
Depois é que eu virei criança
E agora continuei velha
Me transformei novamente numa velha
Voltei ao que eu era, uma velha

*

Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo
Eu era ar, espaço vazio, tempo
E gazes puro, assim, ó, espaço vazio, ó
Eu não tinha formação
Não tinha formatura
Não tinha onde fazer cabeça
Fazer braço, fazer corpo
Fazer orelha, fazer nariz
Fazer céu da boca, fazer falatório
Fazer músculo, fazer dente

Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas

Fazer cabeça, pensar em alguma coisa
Ser útil, inteligente, ser raciocínio
Não tinha onde tirar nada disso
Eu era espaço vazio puro

*

Não deu tempo
Eu estava tomando claridade e luz
Quando a luz apagou
A claridade apagou
Tudo ficou nas trevas
Na madrugada mundial
Sem luz


* Em suas falas poéticas ela conseguia estabelecer uma linguagem própria que, apesar do seu isolamento, transbordava, repleta de lucidez.
* No início sua fala parece crua, ríspida. Só aos poucos é que suas palavras adquirem sutilezas. Palavras capazes de retirar a loucura do espaço de opacidade e de estranheza ao qual ela foi confinada pelo homem moderno.
* A fala de Stela abala as superfícies lineares e automáticas, ameaçando a nossa lógica racional. Visibilidades surpreendentes de algo que não enxergamos muito bem, na tênue fronteira da loucura como uma outra possibilidade de pensamento.

Trechos do livro: Reino dos bichos e dos animais é o meu nome",

STELA DO PATROCÍNIO
Hoje a Estação das Letras faz uma pequena homenagem a ela.

Um comentário:

Unknown disse...

Justiça seja feita!